sábado, 24 de março de 2012

O Lovecraft Investigador - Em busca do Pântano Escuro de Rhode Island

Algumas estórias escritas por H.P. Lovecraft são incrivelmente evocativas.

Como poucos escritores, ele conseguia criar uma aura sinistra e soturna, ao mesmo tempo estranha e aterrorizante descrevendo lugares isolados que pareciam tocados pela presença de forças sobrenaturais.

Tome por exemplo o seguinte trecho retirado de "A Cor que caiu do Céu", um de seus contos mais famosos:

"A oeste de Arkham as montanhas se tornam abruptas, formando vales com densas florestas que nunca conheceram a lâmina de um machado. Há ravinas estreitas e umbrosas, onde as árvores crescem inclinadas, em ângulos fantásticos, e onde pequeninos regatos correm num fio, sem jamais terem refletido a luz do sol. Nas encostas maissuaves assentam-se fazendas, antigas e pedregosas, com casas baixas, cobertas de musgo, remoendo eternamente velhos segredos da Nova Inglaterra".

O que poucas pessoas sabem é que Lovecraft alguns meses antes de escrever esse conto -- e fazer essa vívida descrição, empreendeu uma pesquisa de campo em busca de um local bastante semelhante. Não deixa de ser uma surpresa saber que Lovecraft, um sujeito tipicamente urbano e avesso a exercícios físicos, concordou em se embrenhar no mato em busca de um lugar assombrado conhecido como Dark Swamp (Pântano Escuro).

Segundo o biógrafo S.T. Joshi, foi exatamente isso que aconteceu em novembro de 1923.

A aventura teve início exatamente como acontece em várias estórias escritas pelo próprio Lovecraft. Fazia alguns meses que ele trocava correspondência com um certo C.M. Eddy, um escritor amador de ficção fantástica, também nativo de Providence. Eddy, cujo nome completo era Clifford Martin Eddy Jr, havia se casado e mudado para uma casa a leste de Providence, além do Rio Seekonk. Nas cartas que trocaram, Lovecraft e Eddy discutiam parceria em alguns contos nos quais vinham trabalhando em conjunto.

A amizade progrediu e certo dia Lovecraft foi convidado a visitar o casal. O escritor aceitou de bom grado e apanhando um ônibus na estação de Providence, empreendeu a viagem até a casa onde viviam Eddy e sua esposa Muriel. Sabe-se que Lovecraft não gostava muito de viajar e que frequentemente declinava de convites para visitar seus colegas de correspondência por temer ser um transtorno para seus anfitriões. Mas nesse caso ele abriu uma exceção.

Os Eddy o receberam com entusiasmo e ele se sentiu imediatamente à vontade. A aura familiar fez muito bem ao escritor: Muriel preparava pratos que Lovecraft apreciava e as conversas até altas horas na companhia de Clifford no alpendre, eram sempre animadas. Os dois tinham muito em comum e adoravam compartilhar suas idéias. Muriel relatou em suas memórias que Lovecraft era sempre bem vindo. O escritor deve ter visitado os Eddy em pelos menos outras três oportunidades, sempre ficando como convidado para o final de semana.

Um dos temas prediletos dos dois, como não poderia deixar de ser, eram as lendas e o folclore de Rhode Island. Lovecraft sempre foi um entusiasta das histórias sobre seu estado natal e Eddy se orgulhava de colecionar causos relatados pelos moradores da região. Em uma dessas conversas no alpendre, Eddy mencionou ter ouvido o que ele classificou como "murmúrios sinistros por parte dos rústicos habitantes locais".

Eddy explicou que alguns residentes mais antigos da região falavam com certa reverência sobre um local isolado além dos Montes Durfee que limitavam o distrito em que vivia. O lugar era conhecido como Dark Swamp, uma região erma de mata fechada que segundo o povo simplório não havia sido inteiramente explorada. A descrição de Eddy aguçou a curiosidade de Lovecraft e os dois passaram os dias seguintes buscando informações sobre esse local lendário.

Eles encontraram certa dificuldade em achar alguém que pudesse falar sobre o lugar ou precisar a sua localização. Finalmente, um dos secretários da prefeitura, um senhor já de idade, contou que o lugar realmente existia. Segundo essa fonte, havia rumores de pessoas que exploraram o pântano e que não haviam retornado, grupos de busca, no entanto, voltaram com informações sobre áreas de vegetação tão densa que a luz do sol sequer conseguia penetrar. Daí vinha o nome Dark Swamp (Pântano Escuro).

Os dois consultaram vários outros moradores, mas ninguém conseguiu ser muito preciso sobre direções. Parecia ser o tipo do lugar que ninguém visitava, mas que todos conheciam alguém que lá já estivera. A estória sobre um lugar impenetrável, selvagem e isolado atiçava a imaginação dos dois amigos, tanto que o tema se tornou recorrente em suas cartas, quando Lovecraft voltou a Providence.

Eddy ficou de pesquisar mais à respeito do assunto e em meados de outubro escreveu ao amigo afirmando ter descoberto a localização do pântano. Segundo Eddy, o trecho ficava nas terras de um certo Ernest Law, um fazendeiro que morava numa propriedade bastante isolada no interior. Animados pelas informações, os dois decidiram que fariam uma visita ao sr. Law e quem sabe ele lhes diria onde ficava o lugar que desejavam conhecer. Combinaram de partir no final de outubro, mas fortes chuvas impediram a excurssão. A Sra. Eddy havia manifestado sua preocupação diante de uma expedição rural debaixo daquele tempo. Ponderando sobre os riscos, os dois concordaram em postergar para o início do mês seguinte.

No dia 3 de novembro, Lovecraft visitou seus amigos novamente. Eddy havia traçado o roteiro da excursão e sua esposa havia preparado um lanche composto de sanduíches, carne fria e uma garrafa térmica com chá gelado. Eddy levaria também seu revólver em caso de necessidade.

Conforme o plano, partiram ao raiar do dia seguinte, conseguiram carona em uma carroça que os deixou no povoado de Chipachet a cerca de 8 quilômetros da casa dos Eddy. De lá, seguiram até a divisa do distrito e usando uma estrada de terra contornaram o Monte Durfee. Resolveram descansar e fazer uma refeição perto de uma fazenda onde foram convidados a entrar. Os dois perguntaram sobre o Sr. Law mas receberam respostas negativas, embora o dono da fazenda já tivesse ouvido falar do Dark Swamp, não sabia onde ele ficava e se mostrou espantado quando os dois disseram que pretendiam encontrá-lo.

Deixaram a fazenda pouco depois e seguiram para a porção mais acidentada do trajeto que cruzava charnecas e trilhas repletas de erva-daninha e mato alto. Eddy escreveu que esse trecho foi especialmente desgastante pois a vegetação criava obstáculos naturais que demoravam a ser transpostos. Ele e Lovecraft usavam galhos retirados da mata para manter o equilíbrio e sondar o caminho, ocasionalmente tropeçavam em alguma pedra ou tendo de afastar espinheiros.

Caminhando decididamente, conseguiram chegar a um riacho e lá fizeram nova pausa. Aproveitaram para explorar algumas fazendas abandonadas e Eddy se divertiu atirando em garrafas colocadas sobre uma cerca. Lovecraft fez anotações em um bloco e quando se preparavam para seguir viagem encontraram um fazendeiro atraído pelos disparos do 32 de Eddy. O homem os saudou taciturno e desconfiado, não parecia à vontade com forasteiros por isso nada falaram do Pântano Escuro e se limitaram a dizer que buscavam as terras do Sr. Law. O sujeito coçou o queixo e indicou o caminho, dizendo que a trilha era um bocado traiçoeira, ainda mais para gente da cidade.

A dupla se pôs a caminhar e cruzaram charnecas enlameadas cheias de mosquitos, com o máximo cuidado. Havia grandes arbustos com hera-venenosa e troncos com enormes cogumelos chapéu de bruxa. Finalmente por volta das 2 horas da tarde avistaram a propriedade do Sr. Law e bateram na porta várias vezes. Infelizmente ninguém lhes respondeu.

Esperaram por algum tempo e resolveram buscar informações em uma cabana ali perto. Um senhor negro, chamado Tobias era o caseiro incumbido de cuidar da propriedade. O Sr. Law havia ficado doente e há pelo menos meio ano morava com sua filha em outra cidade.

Eddy e Lovecraft arriscaram perguntar sobre o Dark Swamp e o homem abanou a cabeça confuso. Ele sabia que a propriedade do Sr. Law se estendia além das charnecas e que o interior era preenchido por um pântano traiçoeiro. "Cobras aqui e ali, e lagoas de água sem fundo. Ali as árvores nunca viram machado!" relatou o homem e Lovecraft anotou a passagem no seu bloco.

A dupla perguntou se Tobias poderia guiá-los até o lugar, mas o caseiro disse que não tinha permissão para fazê-lo. Ele também desencorajou os dois: "Não tem nada lá. Só terra preta e água parada". Mesmo assim o homem disse que não se importaria se eles adentrassem.

Eddy e Lovecraft avançaram cerca de 500 metros além da cabana e se certifiaram que a área era realmente insalubre. Havia piscinas de água estagnada e lamaçal para todo lado, não existia uma trilha visível. Resolveram que não adiantava seguir em frente sem a certeza que estavam no rumo certo. Além disso, sem um guia, poderiam se perder no pântano. Começaram a fazer o longo caminho de volta por uma trilha que Tobias havia lhes indicado e que lhes pouparia tempo.

Por volta das seis horas chegaram exaustos a Chepachet, Lovecraft tinha ferimentos e bolhas causadas pelos sapatos pouco apropriados para longas caminhadas no campo. A idéia era fazer o percurso final até a casa à pé, mas a situação estava tão ruim que Eddy teve de convencer um morador a levá-los de carroça.

Quando a dupla apareceu no portão da casa dos Eddy, Muriel ficou aliviada e ao mesmo tempo espantada. Ela escreveu em seu diário: "... Clifford teve de praticamente carregar o Sr. Lovecraft, pois pouco familiarizado com excursões rurais o escritor de contos macabros, estava tão extenuado que não era capaz de colocar um pé diante do outro". Esse comentário não harmonisa com outras referências a Lovecraft e sua incansável disposição para longas caminhadas, mas talvez nesse caso ele tenha abusado.

Em mais de uma carta, Lovecraft alude a essa excurssão pelo interior selvagem de Rhode Island, acrescentando que no trecho final enquanto balançavam na carroça, ele e Eddy começaram a delinear uma estória que deveria se chamar "Black Noon" (Tarde Negra). Infelizmente o conto jamais foi escrito em parceria, Eddy chegou a fazer um esboço incompleto do conto com 24 páginas, sem a participação de Lovecraft. Ele foi publicado postumamente na década de 70.

A experiência no campo, no entanto, foi muito proveitosa para Lovecraft. Ele usou as lembranças dessa excurssão em outros contos; "A Cor que caiu do Céu" e "O Horror de Dunwich". A descrição da propriedade do personagem Nahum Gardner, era como o próprio Lovecraft aludiu mais tarde, uma descrição fiel da fazenda pertencente ao Sr. Ernest Law. Os trechos no bosque com as árvores retorcidas e fungos, estavam presentes em "O Horror de Dunwich", o assustador pântano encontrava similaridade com o bayou onde o culto de Cthulhu se reunia em "O Chamado de Cthulhu". Mesmo Tobias lembrava muito o velho Asa, da novela "O Estranho Caso de Charles Dexter Ward".

Lovecraft e Eddy combinaram de se encontrar novamente no ano seguinte para refazer a expedição rural, mas eles jamais levaram adiante essa idéia.

C.M. Eddy publicou algumas estórias que foram revisadas por Lovecraft anos depois, mas ele jamais conseguiu muita fama como escritor de horror. Ele faleceu em 1971.

Muriel Eddy escreveu dois livros com suas memórias, publicados em 1945 e 1961. Nestes ela relatava o dia a dia de uma típica dona de casa, vivendo em uma fazenda ao longo dos anos 20-30. Ela morreu em 1973.

Em 1983, o autor James Anderson escreveu um conto chamado "Dark Swamp" (que faz parte da coletânea "The Tsathoggua Cycle" editado pela Chaosium e onde fiquei sabendo dessa estória curiosa). No conto Lovecraft e Eddy retornaram no ano seguinte em busca do tal pântano. E, é claro, encontraram o lugar que procuravam, uma área habitada por coisas que a humanidade não deveria conhecer.

Se Lovecraft e Eddy empreenderam uma nova excursão e decidiram encobrir essa história, como sugere Anderson, nós jamais saberemos.

4 comentários:

  1. Alguém poderia indicar no google earth onde fica o pântano?

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  2. Eu encontre no google maps:

    http://maps.google.com/maps?f=q&hl=en&q=glocester,+ri&layer=&ie=UTF8&z=18&ll=41.887015,-71.765474&spn=0.001925,0.005407&t=h&om=1

    Pelo menos a indicação dada em outra página foi essa.

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