terça-feira, 1 de julho de 2014

Centenário da Grande Guerra - A Guerra para acabar com todas as Guerras


Com base no texto de Ricard Overy

Há 100 anos o mundo como se conhecia mudou para sempre.

Em 28 de julho de 1914 um tiro que feriu mortalmente o Imperador Franz Joseph da Áustria. O assassinato deu início a Grande Guerra que seria declarada pelas principais nações europeias 3 dias depois.

Porque devemos lembrar desse conflito? Porque devemos nos importar com ele? Porque devemos pensar a respeito de algo que aconteceu tantos anos atrás?

A resposta é simples: A Primeira Guerra Mundial pode reivindicar com justiça o posto de ser o acontecimento mais decisivo da era moderna, mudando o mundo radicalmente em aspectos que nem mesmo a Revolução Francesa conseguiu.

Com o fim da Grande Guerra haviam muito poucas pessoas nos países envolvidos que não tinham sido diretamente afetadas pelo conflito. A guerra mudou a vida de todos de uma forma ou de outra. Homens se alistaram, ou eram convocados, aos milhões, sendo enviados para combater em lugares distantes que eles sequer sabiam existir. Crianças cresceram sob a sombra das batalhas, onde perderam seus pais. Mulheres se envolveram, assumindo pela primeira vez o trabalho na indústria e agricultura, uma vez que seus mardos haviam partido para lutar. Em meados de 1918, mesmo elas podiam se alistar e servir à pátria. Foi um conflito global. A vida mudou para sempre. Nada seria igual novamente.

Quando a Guerra explodiu oficialmente em agosto de 1914, ninguém poderia ter previsto exatamente o cataclismo que iria se seguir. Alguns supunham que a guerra seria rápida e que tudo estaria acabado em menos de meio ano. Após quatro anos da guerra de custos mais elevados na história humana, ninguém poderia ter mais qualquer dúvida sobre o erro cometido. O mapa político do mundo havia se transformado; o longo período de paz do século XIX foi destruído; a a crescente confiança nas liberdades sociais e no capitalismo acabou arranhado. O principal legado da Primeira Guerra foi uma atmosfera de ódio e ressentimento entre as nações, classes e raças, cujas consequências seriam sentidas nas amargas lutas políticas dos anos 1920 e 1930, e o eventual deslizar para uma segunda guerra, ainda mais destrutiva, apenas vinte anos após a suposta, "Guerra para terminar com todas as guerras".


No início da Grande Guerra, a maior parte do mundo era governada por Impérios Dinásticos cujo poder se espalhava pelo globo. Por volta de 1920, a maior parte deles se fora. Os grandes impérios europeus - os Habsburgos, o russos e o alemão - haviam sido aniquilados, substituídos por repúblicas modernas. O Império Otomano estava derrotado e desmembrado; uma ditadura nacionalista tomou seu lugar no que é a Turquia dos dia atuais. Um grupo de novos estados emergiu do Báltico ao Golfo Pérsico baseados no desejo de independência. A velha Europa das grandes monarquias, dominada pela aristocracia e o exército, já estava em declínio, mas a guerra acelerou e distorceu a sua queda. A Europa de antes não era nada parecida coma  Europa de hoje, ela foi toda remodelada pela Grande Guerra.

Mas não apenas a Europa foi decisivamente afetada. Na esfera internacional, os Estados Unidos entraram tarde no conflito,  mas foi a partir dele que iniciaram sua longa ascensão para o status de super-potência. O desejo de pôr um fim definitivo ao horror das guerras deu frutos em 1920 à Liga das Nações, a primeira tentativa de unir o mundo em torno de um mesmo sistema de leis e regulamentos. Apesar de suas muitas fragilidades, a Liga estabeleceu os fundamentos para a colaboração internacional em muitas questões que se tornariam chave para firmar as Nações Unidas, pós 1945.

Outro fruto da Grande Guerra foi a ruína definitiva do Império Russo, sacudido pela Revolução Bolchevique em outubro de 1917. Se a Grande Guerra não tivesse acontecido, desestabilizando o governo do Czar Nicolau II, será que a mobilização engendrada pelos revolucionários seria capaz de derrubar o regime e colocar os comunistas no poder? E foi justamente esse movimento que iniciou o duradouro conflito entre capitalismo e comunismo que colocou o mundo sob grave ameaça e resultou na Guerra Fria que só foi terminar em 1989.


A Guerra também mudou a natureza do estado moderno. Nunca antes tantos homens foram chamados para defender suas bandeiras. Nunca a economia de nações inteiras foram voltadas quase que inteiramente para o esforço de guerra. Em todo o mundo, estados buscavam aumentar suas fontes de abastecimento, modernizavam suas armas, investiam em pesquisa científica com fins militares para construir armas e meios de suprir as necessidades dos homens no fronte. As indústrias trabalhavam insanamente, construindo veículos, armas, munições, uniformes, utensílios, equipamentos. A propaganda e a informação jamais foi usada de forma tão ativa quanto na guerra. O patriotismo aflorou e incendiou o coração dos homens e fez com que velhos, jovens e crianças se juntassem no clamor pela Guerra.

"Oh que beleza é a guerra, que motiva o homem a desejar morrer pelas cores de sua nação" entoavam as crianças a caminho da escola na Alemanha. "A Guerra faz vir à tona o melhor dos homens", diziam os poetas britânicos.

A única coisa que a Guerra não fez foi mudar sua natureza letal.

Logo no início do confronto, seja no Oeste ou no Leste, ficou claro que os armamentos modernos elevariam incrivelmente a contagem de vítimas. Os exércitos podiam contar com um contingente nunca antes visto de soldados, mas as armas usadas por eles eram capazes de dizimar esse número rapidamente. O combate evoluiu para uma escala maior do que qualquer outra já vista. 

O caldeirão da inventividade foi generosamente agitado e se provou extremamente criativo. Novas maneiras de guerrear se apresentaram. Quantidades incalculáveis de bombas, projéteis e munições estavam pela primeira vez à disposição. Mas na maior parte de sua duração, a guerra foi travada por navios de batalha, artilharia pesada, metralhadoras e cavalos que dominavam os campos de batalha. Os aviões, estavam ainda em sua infância; os submarinos eram escassamente usados, assim como os tanques, uma das invenções mais modernas para o combate em terra. Essas armas seriam usadas na batalha, nos últimos anos principalmente, mas seu potencial completo para a destruição só seria empregado no conflito seguinte.


Contudo, o que existia se mostrava eficiente para deflagrar destruição e morte. Para se proteger, os soldados rastejavam pelo solo enlameado pontilhado de crateras profundas, escavavam trincheiras cobertas de arame farpado e trocavam tiros com inimigos a poucos metros, separados pelo que se convencionou chamar de Terra de Ninguém. O ar tinha cheiro de fumaça, gasolina e pólvora. Os céus estavam negros, os rios vermelhos com o sangue e o mar sujo de óleo. Como consequência desse novo estilo de combate, a guerra, especialmente no Fronte Ocidental, se estagnou, enquanto ambos os lados desenvolviam novas armas e formulavam estratégias para romper as linhas inimigas.

Períodos de relativa tranquilidade eram quebrados pela sinalização e ordens para avançar. Os soldados se erguiam de suas trincheiras e marchavam em uma desabalada corrida suicida na direção dos oponentes. Boa parte deles ficavam pelo caminho, espalhados no chão ou pendurados no arame como espantalhos, colhidos pelos disparos impiedosos das metralhadoras. Barragens de artilharia faziam cair uma chuva de bombas e estilhaços que desfiguravam e amputavam membros inteiros. Os hospitais de campanha tratavam de todo o tipo de ferimento, alguns violentos demais para serem catalogados, outros ferimentos despedaçavam o espírito e a própria alma dos combatentes. Foi nessa época que o mundo foi apresentado a termos como shell shock e trauma de batalha.

A Guerra não foi exclusivamente européia. Ela se alastrou pelo globo, eclodindo em territórios sob o controle das nações protagonistas, mas também contagiando países coadjuvantes que tiveram sua primeira experiência com o horror da batalha moderna. Em Gallipoli soldados australianos combateram numa faixa de deserto sem valor, em Port Arthur, japoneses e russos se enfrentaram pelo controle do Oriente distante, no Norte da África soldados disputaram centímetros na areais do Egito, enquanto o Oriente Médio tremia com o levante de povos árabes contra o jugo dos turcos otomanos. Talvez essas frentes de batalha não sejam tão famosas quanto Ypres, Somme, Brugges ou Marne, mas em cada um deles homens lutaram, sofreram e morreram.

Mais de nove milhões de soldados perderam suas vidas em consequência direta de combate. 


Falta de comida, algumas vezes causada por bloqueios e algumas vezes resultante de falta de colheitas, enfraqueciam as populações nas cidades. Faltava luz, energia, combustível, comida. Quase seis milhões de civis morreram de doença ou fome. Mais de um milhão de civis tombaram vítimas de ações militares. Ao todo, o número de mortos resultantes da Guerra passou de 16 milhões, isso vem falar nos feridos. Vinte e um milhões de indivíduos, muitos deles jamais seriam curados.

O elevado custo da Guerra fez nascer um disseminado pessimismo, um mórbido temor do declínio. Nos anos 1920, milhares de jovens enfurecidos rejeitavam os princípios das gerações anteriores que os tinham enviado para a frente de batalha e ansiavam por se vingar daqueles que culpavam pelo desastroso confronto. Na Itália e na Alemanha, os veteranos Mussolini e Hitler usaram a sede de violência política para construir movimentos nacionalistas radicais que chegaram ao pode rapidamente, primeiro na Itália em 1922, e depois na Alemanha em 1933. Rejeitando a paz, os novos ditadores enxergavam na guerra a maneira de despertar uma nova era militarista que iria forjar os novos impérios.

Se a Primeira Guerra não tivesse acontecido, quase que certamente a humanidade teria sido poupada de horrores como guerra civil, terrorismo político e uma segunda guerra total e genocida. Mas em que mundo nós viveríamos hoje?


Milhões de pessoas ao redor do mundo ainda sentem os ecos da Grande Guerra. Eles conhecem os nomes de familiares que participaram da guerra e que tiveram o curso de suas vidas alterados por ela. O legado político ainda reverbera no Leste Europeu, nas nações que buscam independência e que pleiteiam o separatismo. A guerra ainda ruge nos discursos ultra-nacionalistas e xenofóbicos nos palanques de partidos extremistas. Ela ainda está presente nas questões territoriais e econômicas que dividem os povos. Ela está viva na corrida armamentista e nas armas que nasceram durante esse tempo de provações. A Primeira Guerra Mundial criou um senso comum na história que, mesmo cem anos depois, ainda liga pessoas de muitas nações em uma teia de tragédia que se manterá firme por muito tempo.

Em alguns momentos, a Grande Guerra parece história antiga. O tipo de coisa vista em filmes em preto e branco, com gente vestindo roupas antigas e com cavalos puxando carroças, tudo parece completamente datado e esquecido. Ainda assim, ela está desconfortavelmente próxima.

Se desejamos entender o mundo de hoje, precisamos lembrar do que aconteceu ontem.

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