sábado, 12 de dezembro de 2015

The Strange - Sobre Recursões, Despertos e Mundos Incontáveis (Parte 2/3)


Mas vamos falar do que importa: o que diabos é The Strange?

A ambientação tem lugar na Terra dos dias atuais, você pode centrar a ação de sua campanha em qualquer lugar que desejar em qualquer época. A base para o jogo é a cidade de Seatle no ano de 2014, mas se você quiser fazer ele se passar no Rio de Janeiro em 2016 ou em São Paulo em 1960 fique à vontade.

The Strange (literalmente "O Estranho") se refere a uma rede ou sistema criado por uma raça primordial de alienígenas, uma civilização avançada que existiu há muito, muito tempo atrás. Ninguém sabe ao certo o que eles pretendiam alcançar com essa criação ou o que os motivou, esse é um mistério da ambientação e não espere respostas a respeito. É importante compreender que a tal Rede permeia o universo inteiro e foi construída com Matéria Negra (Dark Matter). Ela é puro caos, sempre em expansão e tem como principal característica permitir o surgimento de realidades, dimensões e mundos alternativos. O Strange é como se fosse a matéria prima para o surgimento de diferentes realidades: o cimento e concreto que permite o surgimento de mundos.

Esses mundos podem assumir qualquer forma, complexidade e tamanho. Alguns são bem pequenos, com apenas alguns poucos quilômetros de extensão podendo ser explorados em poucas horas, outros podem ser gigantescos. Alguns são vazios: destituídos de vida ou características básicas, enquanto outros hospedam civilizações inteiras, populações e formas de vida complexas. Essas realidades surgidas pela força geradora da Matéria Negra são chamadas de Recurssions (Recursões) e são o conceito central de The Strange.


Uma recursão é como um mundo à parte que contém todos os elementos capazes de torná-lo único. Quem lembra de Ravenloft? Pois é, o demi-plano do terror é um bom exemplo do que são recursões: dimensões de bolso cada qual com suas próprias características e peculiaridades. Para todos os efeitos, uma recursão é o "mundo real" para seus habitantes. Nessas dimensões principios básicos da natureza podem ser pervertidos ou burlados. Nas recursões aquilo que julgamos normal pode não se aplicar, e o termo "impossível" passa a ser empregado com enorme frequência. Em uma determinada recursão, magia pode muito bem existir, em outra, ciência anormal (Weird Science) permite dobrar os conceitos newtonianos, em outra ainda, o poder mental é tamanho que os habitantes são verdadeiros deuses. Não há regras para o funcionamento de uma recursão, elas são totalmente imprevisíveis e nunca se sabe o que irá aflorar.

Há uma infinidade de Recursões e o livro básico se esforça em descrever uma boa quantidade delas. Uma das boas sacadas do jogo é fornecer os elementos para que  mestre construa suas próprias recursões, com base naquilo que ele bem entender. Uma recursão toda de baixo da água? Perfeito! Uma Recursão que é um mundo subterrâneo de cavernas escuras e intermináveis? Por que não? Um mundo de florestas com árvores vermelhas e ilhas flutuantes? Claro! Nada impede a criação de uma recursão da maneira que você desejar.


As Recursões podem surgir de forma natural ou através da força do Inconsciente Coletivo, o que é chamado de Creative Leekage (Vazamento Criativo). O conceito é muito interessante e outra grande sacada da ambientação. Imagine milhões de pessoas em um período de tempo pensando em uma mesma coisa, sonhando a respeito dela, imaginam os detalhes ou acreditando na sua existência... toda essa energia mental acaba atuando sobre a matéria constitutiva do Strange que vai se moldando numa recursão espelhando esses anseios comuns. Tomemos por exemplo um filme, no meu entender, a melhor maneira de entender o conceito. A saga Star Wars foi vista, debatida e cultuada por milhões de pessoas ao redor do mundo. Com toda essa repercussão o Strange vai sendo alimentado de informações e lentamente uma recursão acaba tomando forma. Nela o mundo de Star Wars (com Império, Aliança Rebelde, droids, a Força e tudo mais) de fato existe. Outros exemplos? A Terra Média de Tolkien, a Federação dos Planetas de Star Trek, a perigosa Ilha da Caveira de King Kong, a estranha Nova Inglaterra de Lovecraft... todos eles podem existir na forma de recursões abastecidas pelo inconsciente coletivo de leitores, do público de filmes ou de entusistas que se deixam cativar por um determinado conceito. 

Mas o vazamento criativo pode dar origem a qualquer tipo de recursão, sendo que Recursões baseadas na história real são as mais frequentes. Uma recursão que espelha a Roma Imperial pode muito bem existir, bem como uma que se espelha na Europa Medieval, no Império Qin, na Florença Renascentista ou na Fronteira selvagem do Oeste Americano. Algumas podem ser retratos fiéis do que foi a realidade, mas outras podem sofrer mudanças drásticas e conter elementos totalmente dissonantes: quem sabe uma Londres Victoriana com invenções baseadas em Steampunk, um Japão Medieval assolado por entidades mitológicas ou um mundo no qual o Eixo venceu a Segunda Guerra Mundial com a ajuda de marcianos. Nada é estranho demais, nada é impossível quando se trata de recursões. Esse é um dos princípios do Strange: "Mundos Incontáveis e Estranhos".


Vocês percebem o que isso significa?

Para um mestre criativo, The Strange oferece incontáveis possibilidades narrativas. Ele virtualmente permite situar seu jogo dentro de qualquer gênero ou estilo desejado. Se em uma semana, você quiser centrar suas aventuras na Floresta de Sherwood e andar com os alegres homens de Robin Hood não há problema, mesmo que na sessão seguinte você esteja explorando as ruínas de uma civilização alienígena, lutando contra vilões nas ruas de Gothan City ou viajando à bordo do Titanic. Não há limites para o que você pode fazer, para onde você pode enviar os personagens ou utilizar como pano de fundo.

E por falar nos jogadores, que tipo de personagem eles vão personificar dentro de The Strange?

Os jogadores criam personagens que são quickned (Despertos). Eles são humanos que possuem uma sensibilidade que lhes permite não apenas perceber a existência do Strange, mas interagir com ele. Essas pessoas possuem capacidades fantásticas e aprendem a utilizar o poder do Strange para operar façanhas normalmente impossíveis. Pense no Neo de Matrix lutando Kung Fu ou no Mestre Yoda usando a Força para realizar "milagres". 


Como dito no artigo anterior, existem três grupos (ou classes) nos quais os personagens devem estar enquadrados: 

- Os Vetores (Vectors) utilizam o Strange para garantir o domínio completo sobre seus corpos permitindo que eles realizem façanhas físicas improváveis. Saltar de prédios, escalar paredes, correr em velocidade absurda, arrebentar paredes com as mãos nuas. Não é por acaso que vetores tendem a ser soldados, guerreiros, exploradores e atletas;

- Os Paradoxos (Paradoxes) se valem do Strange para manipular a realidade e burlar as leis da natureza. Eles geram, manipulam e canalizam fontes de energia, rompem as regras da física o que lhes permite voar ou parar o tempo, dominam poderes mentais ou conquistam a primazia da magia. Os Paradoxos são em geral pensadores livres: estudiosos, acadêmicos, sacerdotes e cientistas que possuem um conhecimento íntimo do Strange e sabem melhor do que ninguém como interpretá-lo;

- Os Tecedores (Spinners) são especialistas em usar o Strange para alterar, construir e manipular a realidade ao seu redor. Eles literalmente manipulam o mundo que os cerca: mudando a aparência, alterando memórias, enganando e dissimulando, jogando com a percepção alheia para adequá-la conforme suas necessidades. Eles são artistas, espiões, ladrões e mágicos que tecem uma rede de mentiras ou meias verdades onde quer que estejam.  


Além de possuírem capacidades especiais no mundo real - o que poderíamos encarar como super-poderes, os personagens tem uma outra capacidade extraordinária. Eles são capazes de perfurar o Strange e acessar as recursões. Qualquer indivíduo desperto mediante aptidão natural, treinamento ou pura força de vontade consegue se transferir fisicamente para outras realidades. Desse modo, eles se convertem em virtuais exploradores dos mistérios, maravilhas e estranhezas contidas nesses mundos. 

Agora, prepare-se para mais um conceito sensacional em The Strange. Pronto? Lá vai:

Cada vez que um personagem adentra uma recursão pela primeira vez ele é traduzido (o termo original é translated) para essa nova realidade. Ele passa a ter um novo nome, uma nova aparência, um novo propósito e novas capacidades. Ele pode ser traduzido em outra raça, em outro sexo, em outro gênero, diabos, ele pode ser traduzido até como um alienígena, uma máquina dotada de inteligência artificial ou como um animal com consciência, dependendo da recursão visitada.


O que isso significa sendo curto e grosso? Significa que quando seu personagem entrar em um outro mundo ele também será totalmente diferente em relação ao que era originalmente. Digamos que na boa e velha Terra, você jogue com Jack Malone um detetive durão de polícia, mas quando adentra numa Recursão do Império Romano se torna Caius Dillius um legionário da Décima Cohorte. Já quando ele adentra um mundo futurista cyberpunk, Malone se torna o neosamurai Zero. Mas não é só isso... ao entrar numa recursão em que super-heróis existem ele pode ser traduzido como Flama Escarlate, uma heroína cujo poder é incendiar seu corpo e dominar o poder das chamas. Noutro mundo, uma realidade em que máquinas dominaram a humanidade ele é TGG-31, um andróide de extermínio e de caça à serviço do Deus Computador. 

Estão entendendo a amplitude desse conceito? Os jogadores basicamente criam um personagem na Terra e a cada aventura, sempre que entrarem em uma recursão, poderão experimentar algo totalmente novo e fresco. O sistema concede diferentes opções de como reinventar seu personagem e fazer com que ele pareça diferente a cada sessão. Na minha opinião esse conceito não é apenas extremamente inovador, ele quebra barreiras ao incentivar o jogador a expandir os conceitos de seu personagem em diferentes encarnações. Quando eu li isso, minha mente implodiu com a quantidade de possibilidades que se abriram diante dos meus olhos.



Há portais e objetos especiais que permitem acessar as Recursões, mas elas também podem ser acessadas mediante um transe profundo ou via sonho. Uma vez adentrando uma recursão, não apenas o personagem é reconfigurado. Tudo aquilo que ele carrega: suas roupas, objetos e armas são transformados para se adequar à nova realidade. Uma pistola automática na Terra, equivale a uma besta num mundo medieval, a uma varinha mágica numa realidade regida pelo poder místico ou um disparador fotônico de energia num mundo hiper-moderno. Roupas? Mesma coisa: um sapato se torna uma sandália, uma bota ou um pé descalço dependendo de seu destino. Um livro se converte num papiro, num tricorder ou numa tábuleta de barro, e assim por diante.

Quando um personagem é traduzido, o Strange faz com que ele tenha inclusive um lugar na recursão: ele preenche um espaço na sociedade e se vê inserido absorvendo detalhes que ele normalmente não saberia, como a língua, os costumes básicos, o sistema de leis, quem são os governantes, os acontecimentos recentes etc... para todos os efeitos ele se converte em um nativo.



O livro básico de The Strange apresenta duas Recursões em detalhes. Uma delas é a Terra de espada e magia chamada Ardeyn, uma realidade no melhor estilo mundo de fantasia medieval, habitado por elfos, anões, dragões e monstros repleto de masmorras e tesouros. O outro é Ruk, um mundo de ficção científica dark, com uma mescla de Shadowrun e Terminator com tecnologias bizarras. Os dois servem como exemplos para auxiliar o narrador a construir as suas próprias recursões. Eu gostei das opções, mas acho que o mais interessante é realmente construir recursions 100% originais, algo que, com as dicas do livro pode ser feito com algum trabalho.

Está gostando? Bom, ainda há muito mais sobre Strange que precisa ser explorado... por enquanto ficamos por aqui, voltamos na continuação desse artigo, onde vamos aprofundar um pouco mais nos pormenores da ambientação.

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